Um espaço para discussão de Matriz de Camaragibe

PARA REFLETIR...

Somos o que fazemos, mas somos,
principalmente, o que fazemos para mudar o que somos. (Eduardo Galeano)


ARTIGO ACADÊMICO SOBRE A ORIGEM DE MATRIZ

Texto extraído do Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado por Mário Galdino, em dezembro/2009, na Faculdade de Formação de Professores da Mata Sul - FAMASUL 


TRADIÇÃO ORAL X PODER ECONÔMICO



Resumo: Este artigo tem como idéia principal relacionar a massificação da tradição oral, baseada numa lenda, que motivou a atitude dos doadores de transferir a instalação da cidade de um lugar para o outro, em detrimento da ordem econômica à época e suas conseqüências nos dias atuais. Sendo assim, pretendemos contribuir para que os conhecimentos científicos estudados nessa pesquisa sirvam de alicerce para propor que o tema origem da cidade de Matriz de Camaragibe seja explorado e aprofundado nos conteúdos dos currículos das escolas do município.

Palavras-Chave: Origem. Tradição. Poder Econômico.

INTRODUÇÃO:

Diz a lenda que um morador do Alto do Outeiro, um dia foi à capela e não encontrou a imagem do Bom Jesus, alarmado, julgou que alguém o tivesse roubado. Mas, ao olhar o chão, viu algumas pegadas pequenas e foi andando de acordo com o rastro dos pés, só parando em um pé de jitó no meio da mata próximo à moradia do Sr. Gonçalo Moreira. Logo, ao constatar que o Bom Jesus estava no pé de jitó, o morador do Alto do Outeiro subiu e tirou o santo levando-o para a capela de origem. Vários dias depois aconteceu o mesmo fato, então, o morador levou-o ao conhecimento do dono das terras – Capitão José de Barros Pimentel – que, decidiu doar aquelas terras para que a cidade fosse ali edificada entendendo ser a vontade do santo, representada pelo fato dele ter “andado” de um lugar para o outro, indicando o melhor lugar para erguer a cidade.


Tendo como ponto de partida as informações acima referidas, trazemos à luz da discussão as seguintes indagações: que interesses influenciaram a doação das terras do engenho de Baixo? Ao invés de doar terras onde já havia início de povoação e progresso para edificar a cidade, por qual razão foi doada uma parte da terra entre alagadiços e onde havia somente um único morador? Por que, conforme a tradição oral, existe uma lenda sustentando a versão da preferência do santo em edificar a cidade entre alagadiços? O modo como se originou a cidade influencia na vida da sua população atualmente?

Desta feita, somente a partir da pesquisa proposta, é que poderemos, senão responder tais questões, ao menos levantar indicativos das reais razões. A título de hipótese, ponderamos que em razão dos envolvidos na doação das terras e dos resultados que dela se verificam atualmente, houve uma forte influência do poder econômico vigente e interesses em manter a população em uma área pouco privilegiada, em detrimento do crescimento econômico destes.

Por fim, trazemos uma reflexão acerca da educação e, num caráter propositivo, ponderamos quanto à necessidade de inserir e trabalhar mais profundamente a história do município nos currículos escolares.

 QUE INTERESSES INFLUENCIARAM A DOAÇÃO DAS TERRAS E AS CONSEQUÊNCIAS NOS DIAS ATUAIS


No período da invasão holandesa (meados do século XVII) a Igreja Católica compartilhou com os senhores de engenho de todas as decisões para enfrentar as dificuldades oriundas da invasão holandesa, visto que os holandeses adotavam outra denominação religiosa, o calvinismo, considerado pelos católicos como heresia. Portanto, eram rivais do catolicismo. Esta situação propiciou condições para uma aproximação mais forte entre os senhores de engenho e a igreja Católica, o que politicamente podemos chamar de aliança contra os holandeses, os quais, não tinham sintonia religiosa com o credo romano. Porém, graças à chegada dos batavos a Pernambuco, foi instituído no Brasil a liberdade religiosa, pois até então o catolicismo é quem monopolizava. Quanto à esta situação ressalta Mello:

Ao clero católico coube o papel de liderança na estratégia auto-aparteísta, em especial aos capelães de engenho, a quem, mais do que em nenhuma outra época, coube velar pela pureza da fé e pelo idioma lusitano. O domínio do português foi também ajudado pela especialização economia e espacial que segregou o meio rural, com os engenhos majoritariamente possuídos e administrados por luso-brasileiros, do meio urbano, onde a maioria da população era de origem estrangeira. A barreira linguística permitiu assim preservar a religião católica, e por trás dela, os costumes, a existência diária, o que hoje se chamaria os estilos de vida da comunidade luso-brasileira. Para tanto, o campo dispunha das suas inércias, a operarem como outros tantos baluartes do casticismo lusitano. Ali o clero calvinista não contava com meios para enfrentar a influência dos rivais. O culto reformado não se praticava sequer nos engenhos de propriedade de neerlandeses, embora fosse possível aos que residiam nas proximidades das vilas seguirem o culto calvinista. (MELLO, 2001, p. 32)

Mesmo que tivéssemos a confirmação da lenda, o quadro conjuntural na época da doação demonstra que a origem da cidade seguiria os caminhos que nos trouxe à atual realidade. Neste contexto, não podemos deixar de salientar dados importantes contidos na carta de doação que em um de seus trechos deixa claro que além da terra doada ser ilhada, habitava nela um único morador. O que nos leva a constatar que se o local fosse mesmo bom para erguer povoação haveria muitos moradores e não apenas um único, nem seria localizado entre os alagadiços, lagoas e o rio Camaragibe onde nos períodos chuvosos fica ilhado. Sendo assim, podemos inferir que as decisões referendadas pela aliança entre os colonizadores portugueses e a igreja Católica naquele período, eram tomadas levando-se em consideração seus próprios interesses e os problemas enfrentados no momento. Desconsideravam-se as conseqüências para os futuros moradores.


Este modo de gerir a coisa pública é inadequado, porém, atualmente continua sendo praticado pela gestão municipal à exemplo do episódio ocorrido com os moradores da comunidade do Alto do Céu, quando da implementação de um projeto habitacional do governo federal que visava extinguir as casas de taipa no município, junto à esta comunidade que se enquadrava nos pré-requisitos do projeto. Tais moradores edificaram suas casas de pau-a-pique nessa região, para “fugir” da problemática das cheias, visto que no Alto do Céu dificilmente ocorreria inundação, mesmo nos períodos chuvosos. Mas a ingerência do poder público municipal promoveu a transferência dos mesmos para casas construídas às margens do Rio Camaragibe, lugar de fácil inundação mesmo fora dos períodos de enchentes.

Se o interesse fosse de melhorar a qualidade de vida das pessoas, as casas de taipa seriam substituídas por alvenaria em local livre de enchentes. O ocorrido com a comunidade do Alto do Céu nos mostra que os moradores daquela localidade, intuitivamente, contrariam a trajetória massificada pela lenda do santo Bom Jesus, procurando se prevenir das conseqüências das enchentes. Por outro lado, o poder público, inconseqüentemente, age em sintonia com o relato lendário, deixando em segundo plano o bem estar dos moradores.

Uma característica marcante da cidade de Matriz de Camaragibe são as enchentes, que ocorrem periodicamente e a cada três décadas se dá com uma gravidade maior. O que exige dos seus habitantes uma disposição fora do comum para reconstruir a cidade após as inundações provocadas pelas cheias. Como conseqüência destes episódios, o valor dos produtos imobiliários em Matriz tem seus preços sempre abaixo dos de mercado. É comum na cidade não se recuperar os custos dos investimentos feitos nas obras de construções de casas habitacionais. No momento da compra e da venda o valor negociado é comumente menor que o investido pelo proprietário do imóvel.

Em Matriz de Camaragibe a monocultura da cana-de-açúcar impera como principal fonte econômica, resultado disso é uma maioria absoluta da população de baixa renda e que, entre outras coisas, procura de todas as maneiras erguer suas moradias em locais onde nos períodos de enchentes possam escapar ilesos dos perigos das correntes chuvosas. Com relação a isso, além do caso da comunidade do Alto do Céu antes visto, por volta de dois mil e quatro, outro fato reforça o caráter inconseqüente da gestão pública e nos reporta à ação do capitão José de Barros Pimentel ao doar as terras ao senhor Bom Jesus, amparando-se na fábula do santo padroeiro. Senão, vejamos: os usineiros, precisando livrar-se de antigos operários que ocupavam casas em terrenos próximos à indústria, já que não necessitavam mais da mão-de-obra dos mesmos, conseguiram com a prefeitura a construção de casas em uma área da cidade denominada Toca da Jia, local de fácil inundação, proporcionando assim aos usineiros indenizar os funcionários com dinheiro público, ou seja, mais uma vez, as políticas públicas que deveriam privilegiar o bem estar, afastam-se do seu dever, mesmo tendo condições de proporcionar melhor qualidade de vida para a população.
Este quadro inquietante é incompatível com os dias atuais. Uma comunidade inteira não pode aceitar sem nenhuma indignação que fatos como estes ocorram como se estivéssemos no século XVII, período em que a cana- de açúcar já era a única fonte de economia em nossa região, onde a organização social mais sólida era a Igreja Católica e o senhor de engenho era o patriarca. Ademais, a maioria dos moradores era escravizada e não tinha nenhum poder econômico-político a que recorrer.


HISTÓRIA DO MUNICÍPIO NOS CURRÍCULOS ESCOLARES

Atualmente o direito de opinar e contestar são livres. Na cidade de Matriz de Camaragibe existem as mais diversas entidades da sociedade civil organizada como Igrejas (católicas e evangélicas), partidos políticos, poderes constituídos (judiciário, legislativo e executivo), Conselhos (educação, saúde, meio ambiente, criança e do adolescente), Associações (moradores, de pobres carentes), maçonaria, escolas, sindicatos etc. Em razão disso, é impraticável calar diante de acontecimentos tão significativos como se vivêssemos na escravidão.

Vale ressaltar que a procissão que acontece todos os anos durante a semana santa, quando o povo caminha carregando a imagem do Bom Jesus fazendo o percurso contrário ao feito por ele, saindo da atual cidade, antes o Pé de Jitó, até a igreja velha, antigo Alto do Outeiro, onde hoje se encontra o cruzeiro, constitui outro evento que vem a contribuir para esclarecer que não foi adequada a transferência do local para se erguer a cidade. Se por um lado, essa atividade religiosa parece questionar a lenda, por outro, mostra o desconhecimento histórico e falta de consciência política da maioria da população, o que contribui fortemente para massificá-la e torná-la um acontecimento tradicional. Pois, em relação a importância do conhecimento da nossa história, Aquino, Franco e Lopes afirmam:

Assim, podemos compreender melhor que, quando falamos em conscientização, queremos deixar clara a idéia de que construir um novo Homem e um novo Mundo implica a construção de nossa consciência como homem de uma sociedade (...) Nosso interesse fundamental é a construção de uma consciência histórica: precisamos compreender-nos, enquanto homens ligados à Civilização Ocidental, para que nossa percepção das transformações vividas na sociedade em que atuamos fortaleça em nós a consciência de nosso poder de transformar o Mundo e para que possamos caminhar a passos firmes e seguros para a construção de um novo Mundo. Porém, como fazer isso? Como vamos estudar a História das sociedades? Precisamos recorrer à tradição historiográfica de nossa cultura. E, portanto, cabem as questões: como o historiador exerce seu ofício? Respostas a essas questões também precisam ser dadas levando-se em conta a historicidade do Homem: A História escrita é a História de quem? Para quem? A favor de que? Contra quem? (AQUINO, FRANCO, LOPES, 1980, p. 3)

A importância do sistema educacional e suas implicações na educação política e social da população é o que trataremos a seguir. O século XXI vem confirmar os avanços científicos tecnológicos e ditar a velocidade das mudanças econômicas e sociais no Brasil e no mundo globalizado. No entanto, a falta de perspectiva e a imobilidade dos habitantes do município de Matriz de Camaragibe passa a impressão de que houve uma estagnação e que a vida parou em três séculos atrás. Percebe-se que há uma brutal concentração de renda que aliada ao poder de boa parte do sistema educacional, perpetuam a despolitização e a falta de consciência histórica.

As organizações e entidades sociais em geral educam de modo conservador, é indispensável que a escola faça o contraponto desenvolvendo um fazer pedagógico critico alternativo. Sobre o assunto, Freire destaca:

Porque não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Porque não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles tem como indivíduos? Porque não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes palas áreas mais pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? Porque dirá um professor reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos estes operam por se mesmos. (FREIRE, 1991, p.30-31)

Todavia, como parte do sistema educacional a escola deve se apresentar como possibilidade de alternativa para transformação deste quadro, pois tem o privilégio de se relacionar com os cidadãos desde a mais tenra idade.


CONCLUSÃO


As descobertas realizadas durante a esse primeiro exame, foram bastante significativas e nos instiga a continuar em busca de conhecimentos, na perspectiva de reescrever a história do povo camaragibano. Os problemas que nos motivaram a realizar este trabalho continuam cada vez mais atuais, entre eles, podemos citar a reocupação da localidade conhecida como Alto do Céu por novos moradores de vilas da cidade, que, em conseqüência da suspensão do pagamento dos aluguéis pela Prefeitura, ficaram sem teto, desabrigados.



Enfim, é importante ponderar o papel do historiador na análise dos fenômenos sociais e sua importância em reescrever a História, baseado num olhar mais próximo da verdade dos fatos e num prisma diferente dos que pretendem e tentam perpetuar situações desfavoráveis a maioria social em detrimento do seu bem estar particular. Acreditamos que é na análise e registro dessa História nova, como o que pretendeu ser este trabalho, que consiste o papel do historiador.


Agradecimentos:


A todos que se dedicam hoje a disseminar a semente do bom fazer pedagógico.

* Doutoranda em História pela Universidade de Coimbra, Portugal e Licenciada no Departamento de História da FAMASUL em Palmares-PE;

**Discente concluinte na FAMASUL - Palmares-PE, em dezembro/2009.


Referências:

AQUINO, Rubem Santos Leão de; FRANCO, Denise de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das Sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. Rio de Janeiro : Ao Livro Técnico, 1980;

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 31 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996;

MELLO, Evaldo Cabral de. A ferida de Narciso. São Paulo: Editora SENAC, 2001;







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